sábado, 18 de julho de 2009

Divagações literárias


há muito que tinha na mesinha de cabeceira, ou na mala, ou pousado na ombreira do sofá da sala Catarina ou o Sabor da Maçã de António Alçada Baptista...
depois de sorver o Tecido de Outono do mesmo autor no inverno passado, a minha curiosidade estava em crescendo para ler mais obras deste autor que também o inverno que passou viu adormecer para a eternidade...
por estes dias, num daqueles de merecida tranquilidade depois de uns meses de atribulação, peguei no livro e fui fazer a minha fotossintese de verão. nessa mesma tarde, ao sol, numa das minhas praias preferidas, onde nem a brisa do mar conseguia desconcentrar-me...comecei a ler e não arredei pé da tolha até acabar...
nada que eu não esperasse já. muito bom... e curiosamente na escrita de Alçada há mil e um pormenores de sabedoria de vida e de sensibilidade com que me identifico e outros que gostaria de aprender com o passar dos anos...
um destes dias alguém me dizia qq coisa do género : se tentas e consegues ficas feliz...se não consegues ficas mais sábio...é essa a definição de crescer.

A gente, às vezes, acordava de noite e conversávamos. Na noite de Sábado para Domingo acordámos às seis e meia da manhã. Ela disse que lhe apetecia fazer uma coisa fora de propósito. Eu propus irmos ver nascer o Sol ao alto da Peninha e ela achou óptimo. Vestimo-nos à pressa. Eu enfiei por cima de tudo uma camisola grossa de lã, metemo-nos no carro e lá fomos pela serra acima. A luz do dia começava a distinguir o contorno dos montes mas quando lá chegámos acima o sol não tinha nascido ainda, Ficámos no carro, à espera, de mão dada até que ela se aproximou mais de mim e me deu dois daqueles beijos que ela sabia e de que eu estava a tomar o gosto. A certa altura lá vinha o Sol a espreitar no fundo do horizonte. Perto, nem viv’alma. Nem um cão ladrava. Era só o pequeno coro dos pássaros a acordarem-se uns aos outros. O belo disco de luz alaranjada ia-se erguendo e nós ficámos a olhar para o Sol e para os raios que ele ia pondo na encosta da serra. Ficámos quietos e silenciosos como numa missa e aquele ritual diário, mas que a gente raras vezes tinha ocasião de ver, transmitia-nos uma grande serenidade e uma imensa emoção. Senti a mão dela a apertar mais a minha. Ela disse:
- O mundo é tão bonito!
Eu comentei:
- O que faz isto bonito está dentro de nós. Muita gente fica indiferente a este Sol a nascer e quem tem ódio no coração fica lá com o ódio.
A Catarina estava com um brilho no olhar e parecia querer aspirar com as narinas tudo o que se estava a passar. Deixou cair uma frase como se fosse uma resposta ao que eu lhe tinha dito:
- Talvez fosse possível ensinar as pessoas a ver nascer o Sol…
Eu perguntei:
- E a ti, quem te ensinou?
- Tudo me ensinou: o meu pai. A minha mãe, o mundo em que eu nasci… Tudo mais ou menos me preparou para coisas destas. Viver é capaz de ser uma educação de sentimentos.
- Sim. É capaz de ser, só que nós temos uma imensa capacidade de sermos infiéis às coisas para que somos feitos.


Catarina ou o Sabor da Maça- António Alçada Baptista

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